As sete teses equivocadas sobre conhecimento científico: reflexões epistemológicas

Resumo
Este ensaio se propõe a discutir as principais cristalizações acerca do conhecimento científico. Para tanto, optamos por tomar como ponto de partida sete teses equivocadas, que tanto o senso comum, quanto a própria comunidade acadêmica costumam atribuir ao conhecimento científico. Trabalhar as teses equivocadas foi também uma opção didática para facilitar a compreensão do nosso objeto de estudo. Esperamos assim auxiliar na distinção das fronteiras entre o conhecimento científico e outros tipos de conhecimento (religião, filosofia, etc.). O método utilizado foi a pesquisa bibliográfica, com ênfase na área de Ciências Sociais, Metodologia Científica e Filosofia.
Introdução
Definir conhecimento científico, sem dúvida, é uma tarefa árdua. Não obstante a complexidade do tema, defrontamo-nos também com as impressões equivocadas sobre conhecimento científico, as quais terminam impregnando o discurso sobre e da ciência.
Não se trata de defender que existe uma polissemia do termo ciência. Talvez até haja. Entretanto, a aura mítica que se formou ao redor do fazer científico nos confere um desafio maior ainda quando nos colocamos a tarefa da caracterização desse conhecimento.
A primeira tarefa para tentar driblarmos esse inimigo oculto, diluído no discurso de pelo menos três séculos, é tratamos de conhecimento científico e não de ciência . No fundo, claro, estamos falando da mesma coisa. Entretanto é dos vícios que o termo ciência criou que queremos nos livrar. Tratar esse fazer científico, que se iniciou especialmente depois da Idade Média na Europa, por conhecimento científico tem como principal intuito dar à produção científica o seu devido lugar. O lugar de mais um conhecimento, de mais uma possibilidade de explicação da realidade, dentre as várias que o homem criou.
Um dos autores que defende o uso da expressão conhecimento científico é Pedro Demo (2000). Ele acredita que o termo ciência traz consigo uma superioridade conferida ao longo dos séculos e uma pretensão de neutralidade e objetividade difícil de sustentar. Demo ainda defende que talvez o uso mais adequado do termo ciência fosse para as Ciências Naturais.
“Embora mantenhamos o termo ciência nas áreas sociais e humanas, persiste a expectativa de que seu uso mais correto ocorre apenas nos ramos que possibilitam utilização concentrada de procedimentos matemáticos e empíricos, que seriam, ademais, garantias de objetividade e neutralidade.” (Demo, 2000: 19)
De toda sorte, ainda sobram os vícios originários do termo ciência que precisamos retirar do termo conhecimento científico. E essa é a intenção desse artigo. Nossa pretensão é auxiliar de alguma forma na clarificação do conceito de conhecimento científico e desmitificar alguns argumentos que foram construídos acerca do fazer científico.
Esses argumentos foram cristalizados ao longo do tempo e são reproduzidos em nossos discursos e até mesmo pelos veículos de comunicação de massa. Não é raro, por exemplo, os apresentadores de televisão, jornalistas e publicitários darem o respaldo científico a seus produtos e teses postos à venda. Como se o título de “ciência” garantisse uma infalibilidade e uma superioridade. O autor Alan Chalmers (1995) acredita que a atribuição dessa cientificidade é colocada como um prêmio, como se, de certa forma, conferisse um mérito àquilo que recebe o estatuto científico.
Entretanto, diluído nesse discurso há também uma pista muito vaga do que seja conhecimento científico. Na verdade, o que fica no senso comum é que esse conhecimento é distante, especial, talvez quase tão mágico quanto o próprio pensamento mágico. Por outro lado, essa sensação, sem dúvida, é fomentada e talvez até sentida pelos próprios fazedores de ciência, que muitas vezes conferem um estatuto de verdade às suas pesquisas.
Para tratar esse assunto, optamos por uma maneira simples e didática de resolver essa tarefa. Simples porque acreditamos que grande parte das explicações sobre o mundo não só precisam ser, como realmente são simples. Didática porque acreditamos na necessidade da publicidade do conhecimento científico. E essa publicidade justa só se dá quando realmente nos propomos a comunicar, a facilitar a compreensão dos nossos interlocutores para que o diálogo seja legítimo. Portanto, vamos apresentar as sete teses equivocadas que tanto o senso comum, quanto a própria comunidade acadêmica construíram sobre o conhecimento científico.
Mas porque sete? Não deixa de ser uma provocação. Deus criou o mundo em sete dias. Foram sete os grandes sábios da Grécia Antiga. São sete os dias da semana. Quem sabe reside aí uma razão mística e esotérica? Parece um contra senso se propor a falar de conhecimento científico e insinuar o esboço de um pensamento mágico. Mas, até que ponto esse conhecimento científico não nos aparece como algo misterioso. O número sete é igualmente misterioso. Contudo, também esse número era claro para Pitágoras, brilhante filósofo e matemático da Grécia Antiga que descobriu as correspondências numéricas às ordens da realidade.
O que realmente podemos afirmar é que chegamos a esse número por outras razões, além do que colocamos acima. Inclusive, por motivos até mais simples. O número sete, de fato, sintetizou os principais equívocos cometidos quando o assunto é ciência. É claro que existe mais do que sete teses equivocadas sobre o que acreditamos ser o conhecimento científico, entretanto o número sete nos dá uma possibilidade de tratar o assunto de forma ampla e complexa, sem, contudo, termos a pretensão de esgotar essa discussão. Inclusive, não é de mais afirmar que neste ensaio temos limitações temporais e espaciais.
É preciso dizer que essa idéia da forma como pretendemos apresentar não é inédita. Tem como fonte de inspiração o valoroso artigo As sete teses equivocadas sobre a América Latina [1] , do professor mexicano Rodolfo Stavenhagen (1969), que fez um excelente trabalho ao tentar desmitificar o discurso falso e preconceituoso sobre a América Latina. Além disso, é preciso colocar também o excelente trabalho do professor Marcus Palácios (1997), da Universidade Federal da Bahia, o qual também se utilizou dessa fórmula para tratar das teses equivocadas sobre Comunicação e Comunicação Comunitária [2] .
A maior contribuição desse artigo reside mais propriamente numa tentativa de organização didática sobre o tema do que na apresentação de uma “novidade” teórica. Apesar das publicações na área, sabemos que grande parte do que é descoberto e conhecido hoje, com base na ciência, costuma ser ignorado, provavelmente, por nove entre dez seres humanos. Além disso, aproximadamente só 7% da humanidade acredita que sente diretamente a influência das descobertas da ciência (Meditsch, 1990). Portanto, confiamos em mais uma tentativa de elucidar os meandros desse misterioso e pretensioso conhecimento científico.
A partir de agora trataremos uma a uma das sete teses equivocadas sobre o conhecimento científico.
1º O conhecimento científico é o único conhecimento válido e confiável porque explica a realidade como ela é.
Qual é o objetivo do conhecimento científico? Explicar a realidade ou, pelo menos, parte dela. Essa tese, sem dúvida, é uma das mais comuns quando estamos tratando de ciência. Contudo, ela se configura como um tremendo equívoco. Essa crença talvez resida no fato dos próprios fazedores de ciência que disseminam o tão importante rigor de suas pesquisas e dos seus métodos de verificação e de interpretação da realidade.
Retomando Chalmers, o conhecimento científico traz consigo algo de meritório. É como se determinada explicação de mundo ganhasse um prêmio, quando ela é condecorada com o estatuto de ciência. Isso tem a ver com o discurso científico da objetividade e da neutralidade, marcado profundamente pelo positivismo e pela crença da observação atenta e organizada da natureza. Francis Bacon (no século XVII), por exemplo, já afirmava a necessidade de confiar nos sentidos para se compreender a natureza.
O discurso do rigor metodológico, que revela consigo a ditadura do método, é o que o conhecimento científico traz como garantia para a validade dos seus resultados. Sem dúvida, são os procedimentos metodológicos rigorosos do conhecimento científico que o diferencia dos outros conhecimentos.
Entretanto, é preciso dizer que o conhecimento científico não é a única forma de conhecer o mundo e a realidade que nos rodeia. E nem mesmo é o único conhecimento válido e confiável. Outros conhecimentos como o religioso, o filosófico e o senso comum trazem consigo explicações de mundo baseadas em seus próprios métodos de verificação e interpretação da realidade, que certamente não tomaram emprestados do conhecimento científico até porque eles vieram bem antes desse último.
Para nos aprofundar um pouco mais nessa diferença, vamos colocar o acento na questão do método. É a relação com o método que diferencia esses conhecimentos. O senso comum tem, por exemplo, uma forma muito mais livre de dar sentido à realidade. Não estabelece um método rigoroso e, portanto, chega a conclusões muito mais rapidamente. É certo que nem sempre essas conclusões são confiáveis. Assim como nem sempre as conclusões científicas são confiáveis.
Aliás, vale citar Chalmers quanto à validade das descobertas científicas:
“Os desenvolvimentos modernos na filosofia da ciência têm apontado com precisão e enfatizado profundas dificuldades associadas à idéia de que a ciência repousa sobre um fundamento seguro adquirido através da observação e experimento e com a idéia de que há algum tipo de procedimento de inferência que nos possibilita derivar teorias científicas de modo confiável de uma tal base. Simplesmente não existe método que possibilite às teorias científicas serem provadas verdadeiras ou mesmo provavelmente verdadeiras.” (Chalmers, 1995: 19)
Os métodos da ciência são necessários para dar confiabilidade aos seus resultados. Contudo, eles não são infalíveis. Aliás, muito longe disso, considerando que o próprio conhecimento científico é uma construção humana. E, como tal, é imperfeita, passível de erros. Além disso, a realidade é dialética, portanto, dinâmica e contraditória e, por isso, o conhecimento científico, assim como os outros, precisa estar sempre revendo seus paradigmas para não ficar à margem dos acontecimentos.
Outro ponto dessa tese é o que se refere ao conhecimento científico como capaz de revelar a realidade como ela é. Ora, nenhum conhecimento é capaz dessa façanha! Toda vez que olhamos a realidade e tentamos explicá-la estamos fazendo um recorte baseados na nossa própria subjetividade. Mas, por que o recorte? Tão somente pela incapacidade humana de perceber “toda” a realidade. Nenhum conhecimento nos permite olhar para um fenômeno e explicá-lo em toda a sua complexidade. Nem mesmo o conhecimento científico. E mesmo que, por ventura, conseguimos esgotar todas as explicações acerca de um único fenômeno, mesmo que isso fosse possível, seria apenas um único fenômeno de uma realidade grandiosa e complexa. Aliás, poderíamos até nos fazer uma pergunta ainda mais constrangedora como: o que é realidade?
De acordo com Demo (1995) até mesmo esse “recorte” da realidade que preparamos para investigação científica não é mais a “realidade”. O recorte é uma construção que envolve muito da subjetividade do pesquisador. E isso vale tanto para as Ciências Humanas, quanto para as Ciências Naturais.
O recorte é um olhar que lançamos para a realidade para percebermos melhor como funciona um determinado fenômeno. Esse olhar é, portanto, contextualizado historicamente, culturalmente, economicamente, socialmente. Enfim, o conhecimento científico já viveu diversas mudanças de paradigmas. Antes das descobertas de Francesco Redi, por exemplo, os biólogos acreditavam no fenômeno da criação espontânea. Os cientistas davam como exemplo o “nascimento” espontâneo das moscas de dentro de carnes em putrefação, do lixo, de roupas sujas. O cientista Francesco Redi decidiu colocar a prova esse paradigma. Foi então que ele fez um experimento com carnes em vidros abertos e em vidros fechados. Só “surgiram” moscas nas carnes que estavam dentro dos vidros abertos. Esse experimento derrubou por terra o argumento da criação espontânea.
Essa primeira tese que nós expusemos trata-se de um preconceito que tenta desmerecer as outras explicações de mundo em favorecimento da explicação científica. Entretanto, não passa de uma falácia porque o conhecimento científico não é o único válido. E, como vimos anteriormente, nem sempre suas conclusões são válidas. Além disso, nenhum conhecimento precisa carregar a pretensão de querer explicar a realidade como ela é. Tentar explicar bem, na medida do possível, alguns fenômenos da realidade já é uma tarefa grandiosa que o conhecimento científico pode prestar a humanidade.
2º O conhecimento científico retirou a humanidade do obscurantismo, que antes estava mergulhada no pensamento mágico.
A Idade Média ficou conhecida como a idade das trevas. Entre outras razões esse título deveu-se ao pouco desenvolvimento do conhecimento sobre o mundo nesta época. Esse período foi considerado como um momento de estagnação, especialmente, no tange à explicação da realidade. Marcamos o nascimento do conhecimento científico no fim da Idade Média, quando chegávamos à “luz”.
Sem dúvida, o desenvolvimento científico e tecnológico contribuiu e muito para a humanidade sair dessas “trevas”. Mas, a relação não é tão direta assim.
Essa tese está equivocada porque, em primeiro lugar, o conhecimento científico não “salvou” o mundo. Até porque o mundo não estava precisando ser salvo! Antes do surgimento do conhecimento científico existiam outras formas de interpretar a realidade. E formas tão importantes quanto qualquer outra, como as que já citamos antes: religião, senso comum, filosofia.
Em segundo lugar, não é certo afirmar que o mundo estava no obscurantismo. A Idade Média pode até ter ficado conhecida como um período de estagnação, entretanto, é muito provável que essa sensação tenha sido fortalecida pelo discurso do Iluminismo, que acentuou a importância do progresso científico e tecnológico em detrimento do conhecimento mágico e religioso. Como a realidade é dialética, uma fase se coloca no lugar da outra, em princípio, por oposição. Quando essa nova situação se estabelece passa a ser situação e é substituída por outra da oposição. Essa é a dinâmica da realidade.
O mundo, portanto, não estava mergulhado no obscurantismo. Se acreditarmos nisso, estaremos dando muito pouca importância às descobertas gregas, à filosofia oriental e ocidental e ao próprio cristianismo. O que dizer do pensamento de Sócrates, Platão e Aristóteles que existiram bem antes da Idade Média começar?
Agora, como a realidade é dialética dá para entender porque o conhecimento científico surge basicamente em oposição ao pensamento mágico. O que podemos afirmar é que realmente o conhecimento mágico e mítico durante muito tempo foram responsáveis por explicar boa parte da realidade. Especialmente, no momento de mais força da Igreja Católica, Idade Média.
O fato da religião e da magia explicarem o mundo não era necessariamente nem bom, nem ruim. A humanidade precisa sempre explicar a realidade que a rodeia. De acordo com Freud, tendemos a preencher as lacunas do nosso consciente e inconsciente,ou seja, o que não entendemos com clareza procuramos forjar uma explicação. Mas não suportamos simplesmente não entender. Portanto, o pensamento mágico foi necessário à humanidade. Ele não era o único tipo de conhecimento existente naquela época, mas marcou profundamente a humanidade.
O conhecimento científico veio por uma demanda da humanidade na busca de explicações mais rigorosas sobre a realidade. Marcou uma saturação do pensamento mágico. Contudo, não veio para substituí-lo. Afinal, o pensamento mágico e religioso ainda existe e é importante ressaltar que eles também gozam de respeito e autoridade.
3º O conhecimento científico é somente aquele que pode ser provado e reproduzido em laboratório.
Essa tese equivocada revela uma dicotomia que existe dentro da própria comunidade científica. Essa dicotomia certamente já foi mais forte, especialmente no século XX, mas ela ainda persiste. A discussão que vamos travar agora tem a ver com métodos. Mais precisamente sobre as diferenças entre os métodos das Ciências Naturais e os métodos das Ciências Humanas.
O nascimento do conhecimento científico se dá primeiro pelas pesquisas das Ciências Naturais. Temos aí o emprego dos métodos positivistas que enfatizavam a quantificação, o experimento e o empiricismo.
O conhecimento científico nasce, portanto, sob a toga dos métodos positivistas das Ciências Naturais. Esses métodos tinham como base a observação atenta da natureza e a reprodução desses fenômenos da realidade em laboratórios. Não há de fato nenhuma crítica aqui quanto aos métodos quantitativos. Na verdade, poderíamos até retocar essa tese dizendo: “conhecimento científico é também aquilo que pode ser provado e reproduzido em laboratório” .
Entretanto, nem todo conhecimento científico pode ser reproduzido em laboratório. E a partir de agora trazemos as idiossincrasias das Ciências Humanas. Por volta do século XIX, depois da Revolução Francesa e Revolução Industrial, surgem as pesquisas modernas das Ciências Humanas fortemente amparadas pelos métodos positivistas das Ciências Naturais.
“Desenvolvem-se então as ciências humanas, com o objetivo de compreender e de intervir na ordem social da mesma forma que as ciências naturais tentavam dominar a natureza. A ciência econômica, para enquadrar os princípios e a atividade de produção e de troca; a ciência política, para discernir as regras do poder, compreender seu exercício e seus modos de obtenção; a sociologia, para apreender e ordenar a crescente complexidade das relações sociais ...” (Laville, 1999: 53)
O foco era o homem e sociedade, mas os métodos utilizados para as pesquisas modernas das Ciências Humanas não apresentavam diferença aos das Ciências Naturais. Contudo, esse fato não durou muito tempo. Logo no início do século XX, boa parte das disciplinas das humanidades já tentava desenvolver seus métodos próprios, respeitando das características do objeto. Percebeu-se que não era possível reproduzir a Revolução Francesa em um laboratório, por exemplo.
As pesquisas das Ciências Humanas seguem métodos científicos rigorosos e seus resultados têm o mesmo respeito e validade que os das Ciências Naturais. Ambas estão sujeitas a mudanças e revisão de paradigmas. Seus métodos buscam, na medida do possível, respeitar a necessidade dos seus objetos.
Assim colocado, nem todo conhecimento científico pode ser provado e reproduzido em laboratório. Nem tudo o que é das Ciências Naturais pode ser provado e reproduzido em laboratório e muito menos o que se produz em Ciências Humanas.
4º A ciência é mais confiável porque está livre do senso comum e da ideologia.
Como dissemos antes, o conhecimento científico não é a única forma de conhecer o mundo. Aliado a ele existe outras formas de conhecimento como é o senso comum e a ideologia. Mas, afinal o que senso comum e o que é ideologia ?
Qualquer um, de uma maneira ou de outra, é capaz de compreender o mundo pela mera observação. É claro que essa observação tem limites e, certamente, nem sempre responderá a todas as indagações do indivíduo, mas é capaz de responder a situações do cotidiano de forma muito eficiente. Pela mera observação, por exemplo, o indivíduo sabe que o sol nasce todos os dias. Não precisa estudar física ou astronomia para entender isso. Esse tipo de observação da realidade chama-se senso comum.
A ideologia significa o mundo a partir da justificação do poder. O caráter ideológico é pretensioso e tende a encarar a realidade da forma como gostaria que fosse. A ideologia está inevitavelmente ligada ao poder. Se quisermos marcar um contraponto entre ideologia e senso comum certamente o que fica mais marcante é o caráter ingênuo e crédulo do senso comum e o caráter justificador da ideologia, que pode lançar mão da ciência e do senso comum para justificar suas posições.
Sem dúvida, o conhecimento científico se difere da ideologia e do senso comum porque propõe métodos rigorosos de observação dos fenômenos da realidade e também porque, pelo menos em tese, não tem necessidade de justificar, como a ideologia, uma posição de poder.
O problema dessa tese é que apesar desses conhecimentos serem diferentes eles se servem muito um do outro. A ideologia, por exemplo, pode se utilizar do conhecimento científico para elaborar um discurso que justifique uma posição. Assim como o conhecimento científico lança mão da ideologia e o senso comum.
“A ciência está cercada de ideologia e senso comum, não apenas como circunstâncias externas, mas como algo que está já dentro do próprio processo científico, que é incapaz de produzir conhecimento puro, historicamente não contextualizado.” (Demo, 1995: 18)
Essa afirmação de Pedro Demo implica, por exemplo, que até a escolha do objeto que o conhecimento científico vai escolher para analisar leva em conta tanto o senso comum, quanto a ideologia. Afinal existe um sujeito-pesquisador que faz um recorte a partir da sua própria subjetividade. No momento da escolha (e, certamente, na condução de todo o processo de pesquisa), pesam tanto o senso comum, quanto as posições ideológicas do pesquisador. Cabe colocar que o mérito do trabalho científico está também em reconhecer o quanto de ideologia e senso comum tem no trabalho para assim, na medida do possível, retirar essa influência ou manter e, nesse caso, declarar o que não pode ser retirado. Afinal, como Pedro Demo disse acima, não há conhecimento puro e descontextualizado.
5º A religião propõe dogmas, o conhecimento científico propõe a libertação.
Essa tese está correta quando diz que a religião propõe dogmas. Isso acontece porque o conhecimento religioso tem um procedimento diferente do conhecimento científico. O conhecimento religioso demanda fé dos que crêem. É preciso acreditar porque os religiosos não podem “comprovar” (pelo menos, não o podem da mesma forma que o conhecimento científico) as leis espirituais que regem o universo, por exemplo, a partir de um dado sistema religioso.
Os dogmas religiosos existem e dificilmente mudam porque não se trata de um conhecimento posto a prova todo o tempo. Ao contrário, quanto menos mudar o ponto de vista de uma religião, mais seguro o crente vai se sentir. Portanto, os dogmas são verdades indiscutíveis dentro das religiões. Eles não mudam porque se o fizerem podem romper todo o alicerce que mantém os crentes ligados a uma ou outra doutrina.
Já o conhecimento científico não propõe dogmas ou pelo menos não deveria. As teses científicas precisam ser discutíveis porque só assim o conhecimento pode se desenvolver. É da refutação dos argumentos, das teorias científicas que se produz novos paradigmas científicos.
Essa tese está equivocada porque nem sempre isso acontece na ciência. Aliás, o conhecimento científico já produziu inúmeros dogmas, que foram difíceis de serem rompidos. Um exemplo é o caso da Física. No final do século XIX, os físicos acreditavam que não existia mais nada para se pesquisar neste campo. Para eles, as pesquisas na área de Física haviam se esgotado. Eles passaram alguns anos pensando assim e tratando esta esfera de conhecimento como estando totalmente acabada e decifrada pelo homem. O clima de opinião continuou assim até que Albert Einstein descobriu que o átomo não era indivisível. As pesquisas de Einstein causaram polêmica, além de uma grande crise no mundo da Física. A Física Quântica veio reconhecer que só pouco sobre o mundo atômico ainda é conhecido.
Tanto Demo (1995), quanto Chalmers (1995) acreditam que as “verdades” científicas muitas vezes se colocam como dogmas. Não se permitem discutir. Muitas vezes, os seguidores de Marx fizeram isso com o marxismo. Além de muitas vezes produzir dogmas, que são mantidos sob a vigilância ferrenha de muitos fazedores de ciência, o conhecimento científico se assemelha em outro ponto ao conhecimento religioso. Para a maior parte das pessoas é preciso fé para acreditar nos resultados da ciência.
Apesar da adoção de métodos rigorosos de coleta e análise de dados, a maior parte das pessoas que assiste os resultados da pesquisa científica, acredita porque tem fé. Muitas vezes, elas não são capazes de entender como se chegou a um ou outro resultado. Não entendem as regras dos métodos científicos e, portanto, sustentam sua fé no dogma de que o conhecimento científico é infalível.
Portanto, essa tese é equivocada porque seria muita pretensão da ciência propor a libertação. Muitas vezes, o conhecimento científico propõe dogmas porque a própria dinâmica dialética da produção científica está sujeita a isso.
6º O conhecimento científico é reconhecido pela sua preocupação com a forma e a sua desvinculação com a política.
É fato que a ciência se preocupa com a forma. A adoção de uma metodologia clara e rigorosa, a preocupação com a apresentação das pesquisas em forma de um texto científico coerente, coeso, bem fundamentado e com argumentos é sem dúvida uma preocupação constante dos fazedores de ciência.
Entretanto, uma ciência que só se preocupa com a forma produz um conhecimento estanque porque coloca os critérios formais de demarcação científica acima dos critérios políticos. Essa ação faz com que o conteúdo pareça menos importante do que a forma, o pode implicar em uma séria questão ética. O conteúdo de um trabalho científico é exatamente onde está mais forte a politicidade da ciência. Os aspectos formais são muito importantes, mas ficar preso a eles é se tornar refém dos métodos científicos.

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