onte: Adital - Agência de Informações Frei Tito para a América Latina
Segue-se a mensagem que o sociólogo Benedito Carvalho escreveu a propósito do meu artigo sobre Fernando Henrique Cardoso.
Dei uma lida no teu texto sobre o Fernando Henrique, publicado num maçudo livro sobre o dito. Muitas coisas que escreveste já tinhas comentado (só não disseste que FHC escreveu o livro no avião); também não sabia do furo sobre a participação da Marta na pesquisa, coisa de somenos importância, diga-se de passagem.
Senti falta de uma coisa que tens falado em alguns de teus artigos: o governo de FHC e o Projeto Sivam, que, segundo afirmas, foi elaborado, na época, sem concorrência pública, tudo em nome da segurança nacional.
Reli esses dias o livro. Diz o teu artigo que esse livro é muito lido na academia e bastante citado em outros lugares. E fiquei me perguntando do por que isso. Acho que ele é lido porque, além de oferecer uma visão sintética sobre a Amazônia, faz uma análise em que situa os problemas da região dentro de uma perspectiva mais abrangente do capitalismo e do regime autoritário.
Claro que falta nessa visão abrangente, com suas articulações, um confronto com os fatos que tão bem consegues mostrar nas tuas reportagens memoráveis no O Estado de S. Paulo sobre a Amazônia. Não só no Estadão, mas na revista Realidade, na edição extra publicada nos tempos difíceis. E diria mais: na tua coluna de O Liberal, nos livros que já escreveste e nos artigo esparsos publicados em revistas, livros e outras publicações.
Certamente o FHC não sabe o que é um aviú, esse camarão "gito" (como diz o caboclo) que comi (juntamente com o mapará) quando morei em Cametá, lá pelos idos dos anos 70. Talvez faltou ao Fernando Henrique e a tantos outros acadêmicos metropolitanos (como dizes) vestir a bota e sair para o mato, conhecer essa vasta região (que não se conhece num mês e num ano) e acompanhar os empreendimentos que aqui se desenvolvem, enfim, estar na fronteira.
Lembro aqui um das poucos intelectuais que por aqui andam e pesquisam, como a Bertha K.Becker, autora do livro Amazônia - Geopolítica na Virada do III Milênio, e, também, das andanças meio missionárias do sociólogo da USP, contemporâneo do "princípe", chamado José de Sousa Martins, que, na era dos grandes conflitos de terra, onde a Igreja estava sempre presente, esteve assessorando bispos, sindicatos e pastorais da terra. Ele vestiu a bota e saiu para o mato, para os fundões dos Brasil, e pode escrever sobre a Amazônia com melhor propriedade do que FHC.
Ainda recordo de uma observação do meu anárquico professor chamado Luis Alfredo Galvão, que, em muitos momentos, quando se falava no Brasil, dizia: "o que a gente precisa é conhecer esse país. Mas precisamos de dados empíricos, de fatos, informações, pois sem isso as nossas análises e interpretações serão magras, ocas e superficiais, caem na generalidade". Hoje percebo como as observações do Galvão têm sentido.
Afinal de contas, contamos nos dedos o número de intérpretes deste país, os clássicos, por exemplo, como Gilberto Freyre, Celso Furtado, Sérgio Buarque de Holanda, Raimundo Faoro e tantos outros que já conhecemos. Eles foram (e são ainda) importantíssimos para conhecer este país, mas muito do que escreveram precisa de atualizações para compreender esse Brasil contemporâneo, que é complexo e exige análises menos redutoras, como se fez muitas vezes.
Respondendo à pergunta sobre as razões que fazem o livro de FHC ser lido com bastante frequência no meio acadêmico, eu diria que isso acontece pela síntese explicativa que ele oferece, por articular o local com a realidade do capitalismo nacional e internacional e perceber a Amazônia no contexto da divisão internacional do trabalho. Obviamente, faltou dar fatuidade às análises, relativizar certezas, dar conteúdo a certas categorias altissionantes (e repetitivas), tão frequentes em certas análises sociológicas, onde os termos marxistas eram (e são ainda) mais usados como jargões do que como categorias explicativas.
Neste sentido, o livro de FHC, em certos momentos, parece um amontoado de dados sobre a Amazônia (dados estatísticos, informações jornalísticas, dados de fontes oficiais, etc.) com uma introdução mais abstrata, totalizante, onde busca apreender o significado da Amazônia na nova divisão internacional do trabalho.
Outro aspecto que gostaria de destacar na tua análise relaciona-se não só ao que escreveste sobre a era FHC e a Amazônia, que, como mostraste, perpetuou (e aguçou) a pobreza e as disparidades regionais. Mas um aspecto que sempre ressaltas: a importância e a necessidade de se conhecer a Amazônia para se poder planejar, talvez bem dentro daquele espírito mannheiniano que tanto aprecias, onde o cientista não trabalha somente com o seu ponto de vista pessoal, mas sim com a síntese de vários pontos de vista, com várias visões sobre determinados fenômenos e por isso são capazes, melhor do que qualquer outra pessoa, de planejar racionalmente a sociedade.
Certamente, quando se fala em conhecer a região não se trata somente do conhecimento empírico, esse que o morador da região tem de sua realidade; as formas de domínio da natureza, os seus hábitos e costumes, os modos de conviver com seus semelhantes. Isso que os sociólogos de hoje, inspirados em Habermas, chamam de mundo da vida e tão valorizado nas análises recentes do sociólogo português Boaventura de Sousa, que defende a idéia de que a ciência moderna produz conhecimentos e desconhecimentos. Como diz: a ciência faz do cientista um ignorante especializado, faz do cidadão comum um ignorante generalizado.
Conhecer a Amazônia, neste sentido, é não desconhecer esse saber vulgar e prático com que, no cotidiano, orientamos as nossas ações e damos sentido à nossa vida. É isso que faz com que o homem que aqui vive saiba o que é aviú, os tipos de camarões e peixes, a arte da navegação, os tipos de plantas que curam e tudo mais. Mas, conhecer é muito mais do que isso. É abstrair, estabelecer relações, dar um significado aos dados empíricos, ir além do fenômeno aparente, do concreto imediato, como dizia um epistemólogo, e passar para o concreto pensado.
Só que hoje, Lúcio, nem todos os que possuem conhecimento podem vir à Amazônia, esse mundo concreto que precisa ser pensado nas suas articulações mais profundas. Mesmo porque isso que chamamos de Amazônia e que nos leva a pensar numa coisa homogênea, esconde uma multiplicidade de realidades físicas e humanas que uma simples categorização não é capaz de revelar. Esconde, também, uma infinidade de interpretações, das mais simples às mais complexas, dependendo de onde elas são produzidas e reproduzidas.
O que tenho a certeza é que a ciência não prospera se não forem criadas as condições para que ela exista. E ciência se faz com pesquisa, com pessoas preparadas, com estímulos, com projetos, e, sobretudo, com paixão, a paixão de conhecer o mundo, como dizia o Paulo Freire. Sem esses pressupostos não existirão as condições de possibilidades para que avance o conhecimento da Amazônia, hoje mais conhecida nos centros universitários dos Estados Unidos e da Europa do que por aqui.
Quando o FHC escreveu seu livro sobre o Brasil Meridional e foi para o sul estudar a questão racial, que virou sua tese de doutoramento, recebeu estímulos, financiamento para constituir equipes de pesquisa e toda a infra-estrutura necessária para tal empreendimento. Quando escreveu o livro com Muller foi a mesma coisa. Mas,vir para a Amazônia produzir conhecimento não depende de uma decisão voluntária. Se o pesquisador não estiver minimamente com essa base necessária, pode amar a região, embrenhar-se na selva, estabelecer contatos e, dependendo de seu bolso, ir mais além, mas pode ter a certeza que não passará disso.
Não basta somente dinheiro e outros meios, porém: é preciso que as instituições de pesquisas que estão presentes na região sejam, também, sensíveis e desempenhem com competência o papel para a qual foram criadas. Mas a realidade está longe de ser essa por aqui. Um exemplo é a Universidade da região, que, além de possuir poucos pesquisadores capacitados (a Amazônia tem menos doutores que o Campus Universitária de São Paulo, a USP), é carcomida atualmente pelo deslavado corporativismo, onde o que menos vale são os atributos que citei.
Então, como carrear verbas se as instituições são acéfalas, focadas em interesses corporativistas? Por isso, a questão não se resume aos financiamentos. O que falta são políticas menos propagandistas, projetos menos faraônicos e uma determinação mais ousada, o que supõe planejamento, sabendo o que se quer dessa parte do Brasil e não o amadorismo, como tem predominado até agora.
O que se viu até hoje na Amazônia são grandes projetos que chegam de cima para baixo, sem o mínimo de conhecimento da realidade, onde o que fica mais evidente é o saque, a relação colonial. Assim aconteceu nos anos 70 com as políticas de desenvolvimento da era da ditadura militar, com seus grandiloquentes projetos de colonização, dos incentivos fiscais, e, consequentemente, a existência de problemas imensos que se acumulam.
Também não basta o conhecimento, por mais legitimado e competente que ele seja.
Queiramos ou não, os problemas da região não se resumem às questões de gestões tecnocientíficas, por mais importantes que elas sejam. A questão Amazônia, hoje objeto de tantas discussões nacionais e internacionais, é eminentemente um problema político. E quando falo em político, não me refiro aos conflitos políticos regionais, onde velhas oligarquias são substituídas eternamente por outras, incapazes de formular uma plataforma coerente de desenvolvimento regional. Refiro-me à política em âmbito nacional, que, infelizmente, tem levado o país para um beco sem saída, onde predomina o improviso, a descontinuidade das políticas públicas, aliado a corrupção desenfreada.
Não é por menos que isso tem nos levado, tanto no Brasil como na região amazônica, ao beco sem saída, à mesmice, ao narcotráfico, que hoje é responsável pela movimentação de 300 bilhões de dólares no mundo. Razão disso poderá ser explicado porque nunca fizemos a ruptura, a revolução democrática, de que nos falava o sociólogo Florestan Fernandes?
Se as luzes do príncipe da sociologia brasileira não foram capazes de dar uma direção a um projeto nacional, onde a Amazônia pudesse ser pensada de forma mais coerente, como merece, não foi por falta de conhecimento da região. Conhecer é uma decisão política, pois sempre conhece para alguma coisa. As razões do príncipe talvez estejam em razões nem sempre visíveis e passam por interesses que se sobrepõem aos chamados interesses nacionais.
Príncipe e operário, com seu aparente poder, parecem manietados pela mão invisível do Deus Mercado, que, nesse momento de capitalista global flexível e flutuante da dominação financeira, desconhece pátrias, nações e regiões, e está interessado somente na frenética dança da acumulação capitalista que - sabemos - vive uma outra etapa de seu desenvolvimento.
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