O Deus de Kant como postulado da razão prática

“O convencimento prático da existência de Deus provém, segundo Kant, de conceitos fundamentais da moralidade. Para ele,
(...) 
a teleologia moral, que não é menos solidamente fundamentada do que a física, merece mesmo a preferência, pelo fato de assentar a priori em princípios inseparáveis da nossa razão e conduz àquilo que é exigido para a possibilidade de uma teologia, isto é, de um conceito determinado da causa suprema como causa do mundo segundo leis morais, por conseguinte de uma causa tal que satisfaz o fim terminal moral. Para tanto são exigidas nada menos do que a onisciência, a onipotência, a onipresença etc., como qualidades naturais que lhe pertencem, as quais têm que ser pensadas numa ligação com o fim terminal moral – que é infinito – e por conseguinte a ele são adequadas. Desse modo, pode aquela teleologia por si só fornecer o conceito de um único autor do mundo apropriado a uma teologia.

Kant concebe Deus como ser supremo e autor moral do mundo, sendo Ele “a causa que satisfaz o nosso fim terminal moral. Essa teologia “conduz de imediato à religião, isto é, ao conhecimento de nossos deveres como mandamentos divinos.”

Entretanto, como se afigura, à mente de Kant, esse 
autor moral do mundo,agora sob a perspectiva do mistério da Trindade, que é o dogma fundamental do cristianismo? Kant não busca saber o que Deus é em si, mas o que ele é para nós como ser moral, ainda que se deva aceitar a sua qualidade divina, tal como é necessária a essa relação
Sob o ponto de vista de A religião nos limites da simples razão, a Trindade só adquire sentido e utilidade moral se puder ser considerada como exigência da razão prática. Kant interpreta o referido mistério de acordo com essa perspectiva. “De harmonia com essa necessidade da razão prática, a universal fé religiosa verdadeira é: 1) a fé em Deus como criador todo-poderoso do céu e da Terra, i. é., moralmente como legislador santo; 2) a fé, n´Ele, conservador do gênero humano, como seu ser governante bondoso e moral providenciador; 3) a fé em Deus administrador das suas próprias leis santas, i. é., como juiz reto.” Essa fé, segundo ele, não contém, a rigor, nenhum mistério: apenas exprime a relação moral de Deus com a humanidade. Parece que Kant associa as três funções divinas em relação ao mundo com a divisão de poderes do Espírito das leis (748) de Monstesquieu (1689-1755). Isso porque, segundo ele, a ação moral divina é exercida sobre um povo como comunidade. A divisão tripartite “reside no conceito de um povo como comunidade, em que se deve pensar sempre um tal tríplice poder (pouvoir), só que esta comunidade é aqui representada como ética; por isso, pode pensar-se unida nesta tríplice qualidade do chefe moral do Gênero Humano, que, num Estado civil jurídico, terá necessariamente de se repartir por três sujeitos distintos.”
As três funções que Kant atribui à Divindade lhe ensejam o encontro com três mistérios. A primeira função refere-se a Deus-Pai, autor de uma legislação divina e santa para todos os seres livres, membros de um Estado ético. Aqui, os caminhos da razão de Kant são interrompidos pelo mistério da 
vocação: como explicar que seres livres criados possam usar livremente as próprias forças e, ao mesmo tempo, estarem submissos a uma lei universal e necessária?
Portanto, a legislação divina, santa, que concerne só a seres livres, não se pode conciliar pelo nosso entendimento racional com o conceito de uma criação de tais seres, mas importa considerar estes como seres livres já existentes. Não são determinados por meio da sua dependência natural em virtude da sua criação, mas por uma compulsão simplesmente moral, possível segundo leis da liberdade, isto é, uma vocação à cidadania no Estado divino.

Kant entende como racionalmente clara a vocação para a vida moral e ética. Mas a possibilidade dessa vocação para seres livres criados é, teoreticamente, mistério impenetrável.
A segunda função é a da 
bondade do Filho que leva Kant a se deparar com o mistério da satisfação. Observa ele que o homem da nossa experiência histórica é pervertido e de nenhum modo conforme com a lei santa. Entretanto, se a bondade divina o chamou à existência, ele deveria ter também a plenitude dos meios para agir de conformidade com a lei. Como, então, a bondade do Filho poderia suprir a deficiência do ser humano pela graça, outorgando-lhe uma santidade que ele não pode esperar? Seria contrário à espontaneidade do agir livre admitir que um ato livre pudesse emanar de outro agente. “Por conseguinte, tanto quanto a razão discerne, nenhum outro o pode substituir mediante o excesso do seu bom comportamento e por meio do seu mérito; ou então se tal se aceitar, só num propósito moral pode ser necessário aceitá-lo; pois, para o raciocinar, é um mistério inapreensível.”

A terceira função é a de 
Juiz reto, que Kant atribui ao Espírito Santo. O mistério que aqui aflora é o da eleição. Embora se acolha como possível uma satisfação vicária, por um decreto divino e não por mérito do ser humano, como explicar que “se outorga essa assistência a um homem e se nega a outro, e que uma parte da nossa espécie seja acolhida para a beatitude e a outra para a reprovação eterna, tal não proporciona, por seu turno, conceito algum de uma justiça divina, mas deveria em todo o caso referir-se a uma sabedoria cuja regra é, para nós, absolutamente um mistério.” 
Esse Espírito “pode representar-se como procedente de ambos; além de conduzir a toda verdade (observância do dever), Ele é, ao mesmo tempo, o genuíno juiz dos homens (perante a sua consciência)” ambos, a que Kant se refere, é o Pai e o Filho.
Percebe-se que também a Trindade Divina é concebida de modo tipicamente kantiano. Que se pode deduzir da afirmação de que “o chefe moral do mundo” têm uma “tríplice qualidade”: 
santidade, bondade justiça? Kant não afirma que Deus é um ser em três pessoas distintas, mas que Ele é um ser (uma pessoa) com três funções. Sendo assim, o mistério da Santíssima Trindade é por ele interpretado como sendo um Deus com tríplice função pessoal. Evidentemente, essa interpretação é o avesso daquela do cristianismo. Esse mistério, que se pôde “tornar concebível a todo homem, graças à sua razão, como idéia religiosa praticamente necessária,” para que viesse a ser “fundamento moral da religião, em especial de uma religião pública, foi antes de mais nada revelado, ao serpublicamente ensinado e feito símbolo de uma época religiosa inteiramente nova.” 
E foi proclamado por fórmulas solenes em uma religião histórica.
É importante observar que às 
fórmulas solenes da linguagem própria das religiões estatutárias, Kant sobrepõe o amor da lei. E é com base nesta idéia que o princípio de fé na religião seria: “Deus é amor”; “pode-se adorar nele o ser que ama (isto é, que tem o amor de complacência moral para com os homens, quando eles se conformam à sua Lei), ou o Pai.” 
No Pai, “enquanto ele se manifesta na sua Idéia que é o sustentáculo de tudo, isto é, no protótipo da humanidade por ele próprio produzido e amado, pode-se adorar o seu Filho”.Sendo assim, o Filho é interpretado por Kant como sendo o reflexo do Pai, enquanto este manifesta para si a Idéia, que é o protótipo da humanidade, segundo o qual tudo foi criado. Ora, não sendo o Filho uma pessoa distinta do Pai, torna-se difícil admitir a Encarnação, a Redenção e a Ressurreição, tal como as concebe o cristianismo. O Filho seria, então, o segundo momento de Deus (Pai) enquanto é o reflexo de si para si mesmo. Ora, como conciliar tal concepção do Filho com o Mestre do Evangelho, Jesus Cristo? Como conceber a Encarnação do Verbo, segundo a qual, em Jesus Cristo, a natureza humana e a divina se encontram hispostaticamente unidas, de modo que ele é Deus verdadeiro e verdadeiro homem? Jean-Louis Bruch observa que Kant, ao referir-se ao Mestre do Evangelho, às vezes fala de Jesus, outras de Cristo, mas nunca de Jesus Cristo.Explica-se isso, talvez, pelo fato de não poder haver, segundo sua visão, uma verdadeira e própria Encarnação. Nesse único Ser, também se pode adorar o Espírito Santo, enquanto submete a complacência divina à condição da consonância dos homens com a condição de tal amor de complacência, demonstrando, assim, um amor com base na sabedoria, que nada mais é que a conformidade com a lei moral.
Por outro lado, em não havendo uma verdadeira Encarnação, fica comprometida também a integridade da Redenção. Tais conclusões parecem procedentes, porque se o Filho não é uma pessoa distinta do Pai, como poderia encarnar-se e tornar-se Deus e homem? A Ressurreição de Cristo é tida no cristianismo como o selo e garantia definitiva da sua divindade. Mas não sendo ele uma pessoa divina encarnada, como poderia ressuscitar? Na prática, basta que ele seja o protótipo da vida moral, e a sua ressurreição também protótipo da imortalidade da alma.

Segundo Kant, Deus não se deve representar, na fé, nem como legislador supremo 
clemente, nem indulgente para com a fraqueza humana; nemdespótico, imperando sobre o homem com um poder ilimitado. Suas leis não são arbitrárias, mas apenas se referem à santidade do homem. A bondade divina, por outro lado, não pode ser entendida como benevolênciaincondicionada para com o homem, mas no fato de Ele olhar sempre e, em primeiro lugar, a sua condição moral. O que realmente agrada a Deus é a qualidade moral do ser humano. Finalmente, a sua justiça não pode ser representada como “bondosa e susceptível de se lhe pedir perdão”, nem pode ser exercida “na qualidade da santidade do legislador”, porque diante d´Ele nenhum homem é absolutamente reto, mas apenas levando-se em consideração em que medida os filhos dos homens podem ser justos e moralmente corretos, tendo em vista suas naturais limitações.

Para Kant, portanto, a fé numa Trindade divina considerada como representação de uma idéia prática (moral) não teria como objeto um mistério. Mas se esta fé pretendesse representar Deus em si mesmo, ela passaria a ter como objeto um mistério “que sobrepujaria todos os conceitos humanos, por conseguinte, um mistério não susceptível de uma revelação para a capacidade humana de apreensão, e como tal poderia a este respeito notificar-se.”

O Deus de Kant é coerente com o núcleo da moralidade pura. Enquanto partícipe do 
reino dos fins em si ou do mundo inteligível (em Deus desde todo o sempre), a razão prática pura (concretamente o homem) está mui próxima de Deus; ou seja, de certo modo está n´Ele. De acordo com essa perspectiva, nosso filósofo, na prática, acolhe a idéia de o homem ter sido feito “à imagem e semelhança de Deus.” Mas, por outro lado, o ser humano não pode ter acesso a Ele, pois é infinita a distância entre o sensível e o supra-sensível ou o numênico, tendo em vista os limites da razão. Daí, o não sentido da prece individual, no contexto do pensamento kantiano. Contrapondo-se a essa distância infinita, há a presença imediata da lei moral, que é o próprio reino dos fins em si. Por isso, o Deus de Kant não é o Deus do amor, mas o da justiça.O homem será julgado pelo lógos (reino dos fins em si) de Deus em nós, de que Jesus Cristo é o protótipo.”

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Fontehttp://humordarwinista.blogspot.com
JOSÉ CIMINO: "
FUNDAMENTOS DA RELIGIÃO DE RAZÃO EM KANT". (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião como requisito parcial à obtenção do título de mestre em Ciência da religião. Orientador : Prof. Dr. Luís Henrique Dreher, da Universidade Federal de Juiz de Fora). Juiz de Fora, 2005.

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