Os direitos indígenas garantidos na Constituição Federal estão sendo claramente ignorados em Mato Grosso do Sul
artigo de Tonico Benites – Guarani-Kaiowá,
antropólogo, professor e doutorando (UFRJ)
antropólogo, professor e doutorando (UFRJ)
O povo Guarani-Kaiowá de Mato Grosso do Sul não assistiu calado à ocupação de seu território. Pelo contrário, muitos resistiram desde que o território que hoje corresponde ao sul desse Estado foi incorporado ao Brasil, após o fim da Guerra do Paraguai. Sobretudo nas últimas três décadas – após a redemocratização brasileira – as manifestações das lideranças indígenas ganharam espaço no Estado, principalmente através da grande assembleia guarani, a Aty Guasu.
Após a guerra entre Brasil e Paraguai, entre 1864 e 1870, foi registrada detalhadamente a presença dos Guarani (falantes do dialeto Ñandéva) e Kaiowá na fronteira entre Brasil e Paraguai. Mesmo assim, foi assinado contrato entre o Estado brasileiro, à época um Império, e a Cia. Matte Larangeiras, permitindo a exploração da erva-mate na região em que estavam os indígenas. Os trabalhadores envolvidos no serviço da extração da erva-mate já eram Guarani. Como, para a realização desse extrativismo vegetal, não se expulsavam os indígenas do seu território tradicional, e, assim, havia poucos conflitos entre os Guarani-Kaiowá e não indígenas.
O SPI (Serviço de Proteção aos Índios), desconhecendo o modo de viver dos Kaiowá e Guarani e o modo de ocupar seus territórios, instituiu entre 1915 e 1928 oito minúsculas reservas. Nestas reservas esse órgão impôs um ordenamento militar, educação escolar, assistência sanitária e favoreceu as atividades das missões evangélicas que se instalavam na região. Os funcionários do SPI e outros colonizadores não se conformavam com o modo espalhado (sarambi) dos indígenas de ocupar o espaço. Era preciso concentrar os indígenas para possibilitar a ocupação de seus territórios. Várias famílias extensas estabeleceram morada nessas reservas do SPI, mas muitas outras continuaram vivendo nas matas da região. Entre as décadas de 50 e 80, durante a implantação das fazendas, muitos Guarani-Kaiowá trabalharam na derrubada de todo o mato da região que habitavam. Logo em seguida, os fazendeiros recém-assentados, aliados ao poder político da região e à ditadura em vigor, começaram expulsar e dispersar de forma violenta as famílias Guarani-Kaiowá dos seus territórios tradicionais.
Como reação a esses atos truculentos dos fazendeiros e seus capangas, emergiu na década 80 um movimento político pouco conhecido no restante do país, a grande assembléia guarani e kaiowá, Aty Guasu. O objetivo foi o de fazer frente ao processo sistemático de etnocídio, a expulsão e dispersão forçada das famílias extensas indígenas do seu território tradicional. Das Aty Guasu participam hoje centenas de lideranças Guarani-Kaiowá. Durante esses eventos, ao mesmo tempo em que ocorrem discussões políticas, se realizam também rituais para o fortalecimento da luta. É das Aty Guasu que partiram nas últimas décadas as reivindicações de demarcação de terras, além de denúncias e sugestões sobre possíveis soluções para o problema dos Guarani-Kaiowá.
Apesar das dificuldades, muitas das reivindicações, aos poucos, vêm sendo atendidas pelos poderes públicos. Além de organizar as Aty Guasu, os Guarani-Kaiowá passaram a reocupar partes de seu território que já se encontravam identificada, mas ainda permaneciam na posse de fazendeiros. Depois da retomada desse pedaço da terra, os indígenas mudavam definitivamente para essas áreas, saindo das reservas do SPI ou das margens de rodovias onde se encontravam assentados depois de terem sido expulsos pelos fazendeiros. Ao mesmo tempo em que se organizou o movimento de retomada/reocupação de território tradicional Guarani-Kaiowá, os fazendeiros se organizaram e passaram a recorrer destacadamente a duas instâncias de poderes adversos para reprimir e extinguir o movimento indígena. Primeiro, passaram a recorrer a pistoleiros – que eles, recorrendo a um eufemismo, chamam de “seguranças armados” –, que despejam os indígenas dos locais reocupados, além de assassinar, massacrar, torturar crianças, mulheres e idosas indígenas. Os pistoleiros e seus contratantes agem impunemente há décadas na região e já atuaram dezenas de vezes contra grupos indígenas que retomavam suas terras.
Quando os pistoleiros não conseguem efetuar o despejo, os fazendeiros contratam advogados para conseguir a ordem de despejo da Justiça Federal, a ser realizada pelas forças policiais. A forma de agir dos agentes policiais não difere muito da dos pistoleiros: ambos utilizam armas pesadas, queimam as casas das comunidades indígenas, ameaçam e assustam crianças, mulheres e idosos. Muitos indígenas que foram vítimas de despejo e massacres, ao narrar suas histórias, nem conseguem saber se foram pistoleiros ou policiais os que agiram.
No final de 2009, houve vários despejos e assassinatos dos indígenas realizados por pistoleiros na região de Cone Sul de MS. Além disso, neste primeiro semestre, estão em cursos vários processos que podem resultar em despejos, autorizados, ou não, pela Justiça. Muitos grupos Guarani-Kaiowá nessa situação já nem sabem mais a quem recorrer para garantir os seus direitos. Hoje, como se vê na mídia em MS, para grande parte dos políticos locais, missionários, jornalistas e, sobretudo, fazendeiros, os povos indígenas são invasores de terras, pagãos, infiéis e violentos, a serem evangelizados, pacificados, “civilizados”, denunciados e exterminados. Na concepção de muitos dos chamados “produtores rurais”, os indígenas não deveriam reivindicar a implementação dos seus direitos, nem deveriam contar com a proteção das leis e da Justiça brasileiras. Em alto e bom som, vários anunciam que os indígenas podem ser assassinados, massacrados e escravizados, sob o regime de ameaça de morte dos pistoleiros contratados.
De fato, os assassinatos de indígenas estão ocorrendo de forma perversa e cruel em todas as regiões do Mato Grosso Sul. Atualmente, a forma mais destacada de exploração ou escravização da mão-de-obra Guarani-Kaiowá são as usinas de álcool e açúcar. É evidente que essa dominação é não só permitida como também fomentada pelos próprios sistemas de poderes políticos e econômicos dominantes no Brasil.
Fonte: www.boletimmbml.net
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